segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Um mestre. Mineiro, claro. E de Itabira!

"Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás das mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não fossem tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é o meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo".
Poema de Sete Faces. Carlos Drummond de Andrade.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

"Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não pensam."
Ricardo Reis (Fernando Pessoa).
Pois então! Literatura brasileira... é isso aí!

domingo, 10 de agosto de 2008

Reflexão
Grafite e têmpera


...Sim, o verso!



Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, dizei depressa
que vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.

O vestido, nesse prego,
está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.

Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós,

se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou,

chorou no prato de carne,
bebeu, brigou, me bateu,

me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou.

Dava apólice, fazenda,
dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,
lamberia seu sapato.

Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,
a essa dona tão perversa,

que tivesse paciência
e fosse dormir com ele...

Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio. Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos
pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei
aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacasse
de meu marido a vontade.

Eu não amo teu marido,
me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele
se a senhora fizer gosto,

só pra lhe satisfazer,
não por mim, não quero homem.

Olhei para vosso pai,
os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,
de colo mui devassado,

mais mostrava que escondia
as partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,
me curvei... disse que sim.

Sai pensando na morte,
mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,
passei ponte, passei rio,

visitei vossos parentes,
não comia, não falava,

tive uma febre terçã,
mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,
fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,
costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro
pagou conta de farmácia.

Vosso pai sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberba
me aparece já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,
com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido,

última peça de luxo
que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,
da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,
ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoado
confessou que só gostava

de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,
no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,
me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,
rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:
vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa
que recorda meu malfeito

de ofender dona casada
pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido
e me dai vosso perdão.

Olhei para a cara dela,
quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,
quede colo de camélia?

quede aquela cinturinha
delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados
com sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.

Ela se foi de mansinho
e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.
Olhou pra mim em silêncio,

mal reparou no vestido
e disse apenas: — Mulher,

põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,
era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado
e nem estava mais velho.

O barulho da comida
na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,
vestido não há... nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.

Caso do Vestido
Carlos Drummond de Andrade

sábado, 2 de agosto de 2008

O verso não, ou sim o verso?

O verso não, ou sim o verso?
Eis-me perdido no universo
do dizer, que, tímido, verso,
sabendo embora que o que lavra
só encontra meia palavra.


Passatempo. Carlos Drummond de Andrade.
O Corpo, 1997.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Sobre a Erudição e os Eruditos

Hoje, dia friozinho e chuvoso na Ilha da Magia, estou lendo Schopenhauer - aliás, muito bom para acompanhar um chazinho esfumaçante com biscoitos de chocolate, nos últimos dias das férias de julho...

"Entre os professores e os eruditos independentes existe, desde muito tempo atrás, um certo antagonismo, que talvez possa ser esclarecido pela comparação com aquele que existe entre os cães e os lobos.
Os professores têm, pela posição que ocupam, grandes vantagens relativas ao reconhecimento por parte de seus contemporâneos. Em contrapartida, os eruditos independentes têm, pela posição que ocupam, grandes vantagens relativas ao reconhecimento por parte da posteridade, porque esse segundo tipo de reconhecimento exige, entre outras coisas muito raras, também um certo ócio e uma certa independência.
Como demora muito para que a humanidade chegue a descobrir a quem ela deve conceder sua atenção, o professor e o erudito independente podem realizar seu trabalho paralelamente.
De um modo geral, a forragem da cocheira dos professores é a mais apropriada para esses ruminantes. Em contrapartida, aqueles que recebem o seu alimento das mãos da natureza preferem o ar livre."

"Sobre a Erudição e os Eruditos". Arthur Schopennhauer
Tradução de Pedro Süssekind
Bom esse chazinho com biscoitos, né :)

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Traçando Paris


Lumière
Pastel Seco

Por falar em Paris, depois de ler o jornal me lembrei de um livro bem gostoso, e resolvi compartilhar um pouquinho :)

"Estávamos longe de casa, não havia mais metrô, meu orçamento não comporta táxis e os ônibus são um pouco como os bistrôs bons e baratos de Paris: todo mundo sabe que eles existem, mas ninguém ainda encontrou um, na realidade. Foi quando tive a idéia. Telefonei para o Gianni Agneli, a cobrar.

_ Gianni, meu velho! Te acordei?

_ Que nada!

_ Estou telefonando de Paris.

_ Como é que tá a coisa aí?

_ Bom, bom. Um pouco quente...

_ O que manda?

_ Gianni, você sabe como é Paris. Depois da uma hora não há como sair de casa.

_ Cidade pequena é assim. Aqui em Turim isso não acontece.

_ Rá, rá. O fato é que...

_ Não precisa dizer nada. Vou mandar um helicóptero.

_ Helicóptero não, Gianni! Pode ser um carro.

_ Vou mandar um helicóptero levar um carro.

_ Ah. Eu sabia que podia contar com você.

_ O que é isso. Quando precisar de uma carona de avião para qualquer lugar, é só dizer.

_ Eu sei, eu sei.

_ Quem é que está falando?

_ Luis Fernando. Você não me conhece.

_ Certo. Onde é que está, mesmo?

_ Esquina do Champs Élysées com a Marbeuf.

_ Dez minutos, o carro está aí.

_ Obrigado, Gianni! E pensar que no Brasil criticaram o fato de gente do governo aceitar seus favores quando vem à Europa. Só porque você tem negócios no Brasil.

_ O Brasil é assim mesmo.

_ Não sabem que você faz isso pra qualquer um!

_ O que se vai fazer? Dez minutos. Qualquer coisa, telefone outra vez. E olha: pode ficar com o carro.

_ Obrigado, Gianni meu velho!











"Préstimos", Luis Fernando Veríssimo.

Traçando Paris, 1992. pg.99









segunda-feira, 28 de julho de 2008

Fragmento de Surrealismo

Aí vai um trecho do livro que li na viagem de férias de inverno, um fragmento de surrealismo.
" Jái pris, du premier au dernier jour, Nadja pour un génie libre, quelque chose comme un de ces esprits libre de l'air que certaines pratiques de magie permettent momentanéament de s'attacher, mais qu'il ne saurait être question de se soumettre. Elle, je sais que dans toute la force du terme il lui est arrivé de me prendre pour un dieu, de croire que j'étais le soleil. Je me souviens aussi - rien à cet instant ne pouvait être à la fois plus beau et plus tragique - je me souviens de lui être apparu noir et froid comme un homme foudroyé aux pieds du Sphinx. J'ai vu ses yeux de fougère s'ouvrir le matin sur un monde où les battements d'ailes de l'espoir immense se distinguent à peine des autres bruits qui sont ceux de la terreur et, sur ce monde, je n'avais vu enconre que des yeux se fermer."


" Do primeiro ao último dia, tomei Nadja por um gênio livre, algo como um desses espíritos do ar que certas práticas de magia permitem momentaneamente fixar, mas em caso algum submeter.
Sei que ela, com toda a força do termo, chegou a me tomar por um deus, a crer que eu fosse o sol. Lembro-me também - e nada naquele instante podia ter sido ao mesmo tempo mais belo e mais trágico -, lembro-me de lhe ter aparecido negro e frio como um homem aterrado aos pés da Esfinge. Vi seus olhos de avenca se abrirem de manhã para um mundo em que as batidas de asas da esperança imensa pouco se distinguiam dos ruídos do terror, mundo sobre o qual só havia visto olhos se fecharem."
Trecho do Livro Nadja, André Breton.
Sem comentários linguísticos para o momento.
...a não ser o eco do vazio sonoro produzido pelas palavras na mente de quem tenta compreender o que não se entende, se sente... sente... sente...

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Nadja
Grafite e Guache
Ivi



..."Elle me dit son nom, celui qu'elle s'est choisi:
Nadja, parce qu'en russe ce le commencement
du mot espérance, et parce que ce n'en est que le commencement."

André Breton, "Nadja". 1964. pg. 66
Autor do Manifesto do Surrealismo, que deu origem ao movimento.

..." Ela me disse seu nome, aquele que escolheu para si mesma: Nadja, porque em russo é o começo da palavra esperança, e por que é apenas um começo."